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Eu venci - Primeira parte



Por: Leandro Gaignoux

Quinze dias cruzando o oceano Atlântico dentro de um navio, este foi o tempo de viagem para chegar ao destino final: África do Sul, uma terra com uma realidade bem diferente do habitual. Sem dúvida que a incerteza estava presente em todos estes passageiros que no dia 15 de dezembro de 1965 desembarcaram em Cape Town para uma vida nova. Filha de imigrante português e moradora do estado de São Paulo, Dirce Carvalho Feliceti e seu marido, Cosme Feliceti, juntos de seu casal de filhos vieram para África pensando em passar três anos e retornar ao Brasil, mas foram ficando e quando se deram conta, quarenta e seis anos se passaram. De forma tranqüila e descontraída ela nos contou um pouco de sua aventura:

Futebol & Variedades- Dona Dirce como era sua vida ainda no Brasil?

R: Minha vida no Brasil era boa, a gente tinha uma tinturaria, eu com meu marido e meus filhos. Nós trabalhávamos todos juntos.

FV- A decisão de vir tentar a vida na África do Sul, como surgiu?

R: No Brasil estavam pedindo imigrantes para vir trabalhar aqui, faltava mão-de-obra para trabalhar como mecânico e soldador. Aí meu marido fez a aplicação, demorou, mas acabou saindo. Fomos muito bem recebidos, tínhamos a ajuda da imigração, eles levaram a gente para comprar móveis, arrumaram casa, nunca nos deixaram na mão.

FV- Qual foi a sensação quando soube que a aplicação tinha sido aprovada?

R: A sensação foi boa, tive que vender a minha casa para morar de aluguel até a aplicação ser aprovada. O rapaz que tratava disto nos passou a perna, só pensava em ganhar dinheiro, quando meu marido ia cobrar ele dizia que ainda não tinha uma resposta. Um dia o Cosme se enfezou e falou que se ele não desse a nossa residência ele iria matá-lo. Mas falou por falar, nem revólver meu marido tinha. Na outra semana ele veio com a aplicação, estava tudo pronto, era apenas uma forma de tirar dinheiro da gente.

FV- Antigamente a África do Sul não era um destino tão procurado como Europa, Estados Unidos, para tentar uma nova vida. A senhora veio com toda a família, não falava inglês, em algum momento bateu a insegurança?

R: O inglês foi difícil. Eu levantava cinco horas da manhã para comprar carne por que não tinha ninguém, eu apontava por que tinha vergonha quando tinha alguém. O que nos salvou foi o Kibazar, lá você colocava a mercadoria no carrinho e só levava na caixa para pagar. Eu tinha um ódio de ir à loja, mulher gosta muito, entrava e lá vinha a vendedora falando: Can I help you? E eu lá sabia o que ela estava falando.

FV- Como foi lidar com o fato de não falar inglês?

R: Era difícil, na época eu fiquei doente, me perguntava como eu iria fazer. Recomendaram uma portuguesa que era interprete e aí peguei o telefone e liguei, mas ela me disse que eu teria que ir buscá-la e deixá-la de táxi. Naquele tempo ela cobrava cinco Rands por hora, era muito dinheiro. Com o tempo eu comecei a pensar a ligar mais para o inglês, meu marido me disse uma vez que se encontrasse revista portuguesa aqui em casa, seja de quem fosse, ele iria rasgar. As portuguesas arrumavam Grande Otelo, Capricho e me emprestavam. Pensei: Ele vai me fazer passar vergonha, imaginei, como vou repor esta revista? Parei e decidi me aprofundar mais na língua. Arrumei uma amiga africana, ela vinha do trabalho e todo dia ia lá em casa, quando eu a via, ficava arrepiada e falava: Meu Deus, e agora? Ela pegava as coisas e me mostrava tudo, toda semana nós íamos fazer compras juntas. Disse que ela poderia me corrigir que eu não iria achar ruim. Aprendi rapidamente e no fim eu venci.

“Não gosto do Brasil, vou ser franca.”

FV- Hoje em dia sente alguma falta do português?

R: Eu gosto muito da nossa língua, quando eu encontro uma pessoa na qual eu posso falar em português é bom. Nós somos diferentes, comunicativos, não sei, nosso coração é diferente, por exemplo: Você não olha para um negro com raiva, você olha com pena, por que agora não é ele que está passando necessidades, mas foram os pais, avós. É uma pena, a África é linda, eu adoro a África do sul. Talvez seja por que tenho meus filhos e netos aqui, não tenho coragem de deixar ela sozinha de jeito nenhum.

FV- Interessante é ver a quantidade de brasileiros que a senhora conhece, nos conte como começou esta relação de amizade?

R: Nós fazíamos pastel e na época o Cosme pediu autorização para o embaixador deixar nós vendermos o pastel na embaixada. O pedido foi concedido e daí comecei a conhecer comandantes, coronéis, funcionários e com isso já estávamos inseridos no ciclo.

FV- Há quarenta e seis anos vivendo aqui, a senhora se sente mais brasileira ou sul-africana?

R: Não gosto do Brasil, vou ser franca. Meu marido se aposentou e nós voltamos para o Brasil, pois ele disse que queria morrer na terra dele. Vendemos tudo que nós tínhamos e saímos da casa somente com as malas. Mas não adiantou, não nos acostumamos. Tenho filhos e netos aqui, eles me ligavam e falavam para nós voltarmos. O meu neto me escrevia cada carta. Um natal eles foram passar conosco, lá resolvemos vender tudo de novo e assim voltamos com eles.

“Meu marido chamava os negros que trabalhavam com ele para vir aqui em casa, sentavam no sofá, comiam uns aperitivos, nós nunca separamos.”

FV- A senhora viveu o auge do apartheid, como foi conviver com isso?

R: Eu quase não presenciei nada, porque a mulher ficava mais em casa, mas meu marido viu diversas vezes no trabalho. Os sul-africanos brancos judiaram muito dos negros. No fim do expediente eles se sentavam e faziam os negros tirarem os sapatos deles, e se não tirassem, apanhava. Se alguma ferramenta sumisse, eles apanhavam de chicote na sala do supervisor.

FV- Senhora chegou a passar por algum problema desde que chegou ou algum tipo de discriminação?

R: Não sofri, sabe por quê? Eu trato eles muito bem, durante um tempo trabalhei em um açougue, sempre fui respeitada e bem tratada. Vinham na minha casa, não havia discriminação. Meu marido chamava os negros que trabalhavam com ele para vir aqui em casa, sentavam no sofá, comiam uns aperitivos, nós nunca separamos. De jeito nenhum posso falar mal deles

FV- No Brasil a nossa situação racial é muito diferente, todo mundo vivendo misturado sem maiores problemas. Como é conhecer os dois extremos?

R: Eu tenho muita pena, o negro tem o mesmo direito que nós. Se eu cortar meu dedo a cor do sangue é vermelho, não é azul, nem branco. Agora você pode ir ao mercado e reparar, o branco leva a cestinha enquanto o negro está com o carrinho cheio. A situação está mudando.



Leandro Gaignoux - Direto da África do Sul

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